texto escrito em: 23 de dezembro de 2011
Na verdade já passa da
uma da manhã. Estou em Caravaggio. Cheguei aqui ontem e sem vontade.
Não me arrependo de ter
vindo, eu não sabia que a nona estava doente no hospital. Fui saber quando fui
até lá com o tio Moa que foi me buscar na rodoviária para eu ir pra casa
depois.
Mas para uma breve explicação:
Não chamamos ela de vó, só de nona. Sempre foi assim!
Os corredores do prédio azul se mexiam ávidos com os berros
de infância:
- Nona, nona, nona.
Ou os berros de nossas mães reprimiam qualquer forma de efusividade:
Não incomoda a
nona,
A nona tá dormindo
Vai lá dá um
abraço na nona. – E as crianças davam
pulos em seu colo.
Era um jeito de considerar a pessoa mais idosa da família,
eu pensava.
Enfim, no hospital eu
nem pensava que a nona estivesse ruim. Até falei com ela. Eu logo disse: que linda nona, fazia tempo que não te via.
E ela respondeu com os
olhos pingados de até logo: ôôo sim linda, deitada aqui nessa cama.
E eu logo larguei: ah, mas logo a nona
sai daqui né?!
E então me apoiei em outro
assunto.
Eu pensei que a nona
logo fosse melhorar e sairia dando risos assustados pelos corredores. Mas não,
hoje pela manhã ela foi pra UTI e à noite veio a mãe com a notícia de que a
médica havia dito que dessa noite ela não passava.
Eu nem acreditei.
A dor maior é de quem
fica. Ainda mais pros filhos da nona Henriqueta que se encharcam de sal bem
mais que a pipoca do fim de semana.
Eu penso é na
família depois. A nona vivia querendo nos unir chamando pra festas e pras
ceias. Não sei como que ela conseguia erguer tanta gente com aquela idade toda.
A família era mais pesada que os tijolos que o meu pai
carrega.
Fazia-se de raiz e
rizoma e dava voltas por tudo. A Nona era um tipo onipresente e fazia milagres
conseguindo unir a turma toda.
Falo no verbo passado
porque não consegui dormir essa noite. Mal tentei e já dei pulos na cama com o
telefone tocando.
A
Nona se foi, disse o tio Moa pra mãe. E vi lágrimas
na Val!
Ainda não chorei. Mas
sei que logo vai doer. É o estado da embriaguez que não deixa acreditar, já
dizia os experientes em ver partidas.
A Nona adorava Natal!
Esse ano não teremos abraços dela.
E também não teremos a
cesta de ouro negro e sonho de valsa que ela preparava.
Nem nunca mais verei a sua mão nas costas na altura da cintura e o seu andar
pesado e lento.
Três terços
por dia! Vai rezar, que Deus ajuda, minha
filha! Era assim que dizia quando alguém vinha com problemas.
A sua forma de dizer que estava com saudade era de engordar
sorrisos.
O seu café aos domingos à tarde se fazia de sonho para
tantos cafés de domingo à tarde que não eram os dela.
Mortadela todo o mundo comia, mas só na casa da nona que
tinha cara de mortadela da casa da nona. Era tão mais gostosa, bem quase me
arriscava a dizer que era uma mortadela diferente.
Eu dizia pra mãe: vou
deixar pra tomar café na nona!
O café doce dela era tão doce quanto tantos cafés, mas só
aquele tinha cheiro de nona e só aquele eu me permitia tomar.
Ontem eu fui lá
dentro, dizia a Henriqueta.
Eu nunca conheceria o lá
dentro se não fosse ela.
O lá dentro é tão mágico quanto qualquer ideia de céu.
Mas hoje não valeria dizer isso.
Hoje só temos lágrimas.
E vejo inúmeros olhos de Nona se lacrimejando por aí.
Olhar que hoje
despedaça incontrolavelmente.
Bom, a ideia não era
fazer doer mais.
A ideia era colocar a
mostra os corações.
Mas dói revisitar. Dói porque essa saudade, sendo um dos
sentimentos mais urgentes como já diria Clarice Lispector, não morre. Ela
esculhamba por dentro, remói. Faz buracos feito bicho de goiaba. Revisitar te
permite viver de outra forma. E essa forma é doída porque não é concreta.
Por fim, me recordei de
um poema do grande poeta Manoel Barros.
Ele escreve:
O tempo só anda de ida.
A gente nasce cresce
amadurece envelhece e morre.
Pra não morrer tem que
amarrar o tempo no poste.
Eis a ciência da
poesia:
Amarrar o tempo no
poste.
Vamos amarrar esse
tempo nas mais altas abstrações. E que mesmo que o alicerce da família tenha se
partido, que nos façamos alicerces por nós mesmos. E em meio às lembranças.
Em
nome da paz, em nome dos filhos e netos, em nome do amor (eterno). Amém!